Minha história com o teatro começou em 2002, quando fui aprovado para um curso de teatro mambembe no Centro Cultural Galpão Cine Horto, do Grupo Galpão, famoso grupo de teatro mineiro. O fascínio pelas cores e formas, íntimas da minha arte manifestada por meio da pintura, levou-me a um universo novo e encantador, que o teatro descortinava. Técnicas de palco, maquiagem, habilidades malabaristas, expressão corporal e improvisos fizeram-me sonhar com uma nova habilidade artística. Foram três anos de estudos. Ali aprendi a doçura e a leveza da representação, ainda quando se tratava da tristeza ou da dureza dos dias.
Paralelamente ao teatro, encontrava-me imerso, ainda, nos estudos de filosofia, que também me abriam novas possibilidades. Assim, rapidamente percebi que essas experiências engendravam em mim uma perspectiva artística que iria, no futuro, determinar todo o meu fazer objetivo na arte, pois notava que toda a aprendizagem entrecruzada no universo artístico e filosófico iria repercutir, de algum modo, num vasto potencial de transformação existencial para a vida de outras pessoas, porque também transformava a minha vida.
Foi então que decidi fundar um grupo de reflexão teatral e filosófica na periferia de Belo Horizonte. Nesse grupo, trabalhávamos as técnicas aprendidas no Galpão Cine Horto. Tudo era permeado de muita reflexão social e filosófica, envolvendo a realidade em que aquele grupo se encontrava. Nesse tempo, tivemos a oportunidade de montar três espetáculos:
Consequentemente, depois de ter passado um tempo fora do Brasil, bebendo de outras fontes, culturas e tradições, chego à encantadora cidade de São Paulo, em 2010, e a riqueza cultural dessa metrópole potencializará o meu fazer artístico, tanto na pintura quanto no teatro. Nessas terras, pude roteirizar, dirigir e atuar em quatro espetáculos teatrais, com textos do jesuíta, poeta e escritor André Araújo (Doutor em Estudos Literários pela UFMG). Abrindo, por essas vias, muitas discussões ético-estéticas e de intervenção cultural nesse imenso mosaico artístico que compõe a capital paulistana.
Como primeiro texto que faria parte da proposta do “Natal Iluminado”, na cidade de São Paulo, “O Menino e o Mistério” – concebido como Auto de Natal da Paróquia São Luís, em 2015 – movimentou a programação cultural da Avenida Paulista naquele ano. O espetáculo abriu um horizonte poético e imaginário em franco diálogo com a literatura e as outras artes. Deu vida, assim, de forma leve e poética, à perspectiva teológica do Mistério da Encarnação. Além disso, viu-se claramente que, ao ser proferida e encarnar-se, a Palavra se faz poesia e anima toda a obra da Criação. Nesse sentido, “O Menino e o Mistério” quis evidenciar como as criaturas e tudo o que existe vive e é habitado pela presença mística desse Mistério que se faz Menino. Dessa maneira, o teatro, de mãos dadas com a poesia, a música e a dança, foi enriquecido pela projeção de inúmeras imagens da obra da Criação, nas paredes da Igreja São Luís, numa releitura do livro do Gênesis em estreita relação e consonância com as narrativas bíblicas do Evangelho, atualizando, em todo tempo e lugar, a vinda de Cristo ao mundo. O Menino agradece, assim, a infinidade dos Dons colocados à disposição do homem e bendiz o Mistério que se revela, até os dias de hoje e em toda parte, em tudo o que vive e respira.
Na segunda edição do Auto de Natal, no ano de 2016, a proposta estética e teatral quis tratar, mais diretamente, da figura de uma criança, na perspectiva de uma adoção filial. Protagonista e irmão do gênero humano e de toda a obra da Criação, o Menino revela-se irmão do Homem, ser humano continuamente criado, a partir da adoção filial do homem pelo Pai, em seu profundo Mistério de Amor. O Menino é, assim, a um só tempo, a pureza e a ingenuidade do ser humano vulnerável, em quem Deus confia plenamente e se entrega, e, por outro lado, a divindade assumida humanamente, que quer relacionar-se e, por isso, se encarna no meio do mundo. Criatura humana, em profunda relação amorosa com o Filho do Homem, o Menino descobre-se habitado por esse Amor que dá sentido a toda sua existência. No mesmo movimento, o Filho do Homem se revela e aponta para o Mistério do ser humano, amado e assumido como filho e pessoa, princípio e fundamento de toda a História da Salvação.
O ano de 2017 propõe um olhar mais alargado sobre o Mistério da Criação e da Encarnação, em consonância com o sentido profundo da existência humana tão dilacerada e marcada pelo sofrimento e pela exclusão. No entanto, como não há nenhuma realidade que a presença transcendente do Criador não possa tocar e transformá-la desde dentro, será esta mesma experiência humana, decaída e ferida de morte pela sociedade e pelos reveses da vida, que vai dar lugar e abrir, pouco a pouco, espaço para a Salvação acontecer. É assim que os testemunhos de uma prostituta e de um morador em situação de rua, vão mesclar-se à voz de um pássaro encantado – que vai devolver coração e sentido à vida das personagens e de todos os que se deixarem provocar pela aventura humana e espiritual que se acende a todo instante e que acontece a toda hora. Porque a Vida se revela aí nesses lugares, a despeito das crises atuais e da náusea do cotidiano, afirmando-se, veementemente, como o sentido último e primeiro da existência, numa resposta sempre misericordiosa e reconciliada de um Bem mais universal que nos envolve a todos, sem fazer qualquer distinção.
“A Vila do Sino” nasceu de uma vontade partilhada de fazer dialogar a arte em suas múltiplas formas e sensibilidades para contar a vida de um lugar e de um povo. Por isso, esse vilarejo conta com outros possíveis desdobramentos ético-estéticos e culturais (sarau, música, teatro, dança, exposição etc). Nesse sentido, compareceram já, para dar contornos a este sonho, a poesia e a pintura. Ambas, valendo-se de seu potencial inventivo, deram-se as mãos para gerar os vários personagens que foram sendo convocados para evocar a vida dessa gente anunciada no cotidiano mais banal e corriqueiro de uma vila do interior do Brasil.
“A Vila do Sino” é, assim, um desses rincões que não contém nada de mais, senão o que guarda em si e partilha: literatura, história e memória cultural. Histórias de uma cultura correndo o risco de se perder no ritmo alucinado dos nossos dias em que as coisas se pulverizam pelo excesso do mesmo e pela indiferença. Memórias afetivas profundamente marcadas e ritmadas pela tessitura de vozes narrativas que não querem deixar de apanhar rumores vindos de várias direções, para contar e juntar o que se dispersou no tempo e no espaço. Literatura que, no encontro com o registro mágico de um traço de tinta contra a tela branca, busca o testemunho de uma identidade que conflui no mesmo emaranhado junto do compasso rouco de uma voz mais forte que se personifica: um sino que regula tudo, enquanto toca e anuncia que em toda parte e o tempo todo “Tem Deus!”
“A Vila do Sino” ressoa essa verdade, e esse eco se faz sentir por todo canto. Do campanário, o sino marca as horas, as festas e o luto, enquanto atesta que mesmo o elemento mais trivial encontra-se habitado por uma presença absolutamente transcendente. E esta força vital preenche as lacunas. O tempo escoa de um modo diferente. A vida e a morte se revezam como em todo lado, e as pessoas sabem que precisam desse registro. “Tem Deus!” na vida desses homens e mulheres, crianças, jovens e adultos. “Tem Deus!” na natureza, no trabalho, na pureza da infância e nas descobertas da adolescência. “Tem Deus!” indo e voltando onde a resposta a essa alegria não parecia mais possível. Assim, pura e simplesmente: “Tem Deus!” sem precisar mais de muita explicação…